Pensamento

I. Intenções ‒ «trazer perguntas»

Desde Janeiro, a Rádio Manobras tem estado à escuta de um pedaço da cidade do Porto.

Nenhuma rua da cidade leva a este lugar. É preciso perguntar, entrar no portão do bairro, chegar ao limite deste e prosseguir, empurrados para uma travessia mal assumida da linha do comboio, para então chegar a uma estreita escarpa, sobrevivente entre o caminho de ferro e o leito do rio, muitos metros abaixo. Não existe nenhum outro modo de acesso, e este sucessivo adensar de excentricidades vai dissimulando o rasto da existência deste lugar.

O carteiro não sabe onde deixar as cartas. E é neste umbral que a Rádio perguntou, desajeitadamente, tal como o carteiro, se podia entrar. Uma espécie de conselho, devolveu-nos, segura e firmamente: sim, se vocês vêm por bem, são bem vindos, e se vocês precisam de ajuda, nós estamos disponíveis para vos auxiliar.

Abeiramo-nos.

II. Lugares ‒ «é a vida»

O que nos propomos a fazer é, antes de mais, um “onde”. É um estar e escutar, para conhecermos um lugar. E conhecer é, em certa medida, experimentar sermos esse lugar.

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Como sabe que somos da Rádio, M. guia-nos pelo lugar, observado enquanto paisagem sonora: o primeiro embate é o do comboio rasante, mas depois ouvem o alfa que é diferente do urbano, que é diferente dos que se arrastam com vagões de carga; depois há a linha aqui e há os que passam além, na ponte; …o rio pressente-se pelas linhas de água que correm subterraneamente pela encosta, brotando aqui no poço, acolá no reservatório; num dia de céu limpo, o som mais persistente é o trânsito dos barcos turísticos lá em baixo; e há ainda o sobressalto dos carros na ponte do infante;
…ao descerem às hortas ouvem o balançar surdo dos degraus improvisados na morfologia acidentada; sucedem-se os giros metálicos de cadeados e gonzos em portas de chapa, que seccionam o terreno arado de cada qual; …atrás dos anexos de tábua e desperdício, podem ouvir as galinhas e os galos que se debatem e, à sombra do peso de uma figueira, encontram patos; …de resto, por todo o lado estão sempre os gritos das gaivotas;
…há portas a abrir e a fechar e intimidades que transbordam das finas paredes; mistura-se a pancada da enxada que se enterra na terra com outros sons de trabalho, como o mergulhar da roupa nas bacias, o rolar de pedras, o desfolhar do milho para os coelhos, o arrastar de pés…

M. cruza-se com a M., o A., e outros, e recolhemos farrapos de um dialecto que não deciframos, um sotaque musical, e ainda um timbre apertado que se forma ao atravessar a garganta. Mais tarde, somos atingidos por T. e E., o casal de sereias-criança que entoa palavras com uma doçura hipnótica ‒ enquanto nos fala de como o diabo nos apanha, se nos permitirmos baixar um pouco a cabeça. O estalo repentino de um bater de palma de mãos, no final de uma frase, faz a vez de ponto de exclamação, suspendendo no ar uma pergunta circular.

O demasiado perto e o que atravessa de longe para longe tudo ecoa numa reverberação imensa do vale.

III. Criações ‒ «frutos paridos»

Fomos para o terreno transportando connosco propostas de trabalho, para encontrar participações de outros e para adquirirem ressonâncias na cidade. Estão assim em curso:

  • o desenho e construção de um estúdio móvel de rádio;
  • a composição de um álbum sonoro, de registo documental e ficcional;
  • e, por fim, uma performance de experimentação musical transmitida em directo na rádio.

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Por entre as trepadeiras, invasoras de aroma doce, e os casinhotos de madeira, rede e tecido, a mão do homem parece mais dócil no caótico entrelaçar da natureza.

Por exemplo, alí parece que uma pedra caiu inadvertidamente, mas depois foi solidificando na terra e, quase sem outro gesto, transformou-se em solução de atravessamento. Além, uma semente é lançada num resto de terra entre cacos de vidro e, de improviso, vinga realmente um fruto. Também o M. disse que, quando cá chegou, nunca pensou viver assim, nem aqui ficar, mas o tempo foi passando e ele foi ficando, foi passando e ficando.